Receber um benefício social e, ao mesmo tempo, tentar a sorte em apostas online deixou de ser possível para milhões de brasileiros. Uma portaria da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda, publicada no Diário Oficial da União, bloqueia depósitos em bets feitos por quem é atendido pelo Bolsa Família ou pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC). A medida, que cumpre decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), mira a proteção dos recursos públicos destinados a alimentação, saúde e educação. Enquanto o mercado de apostas explode no país, com gastos líquidos de quase R$ 3 bilhões por mês, o governo aperta o cerco para evitar que o dinheiro do contribuinte termine em roletas virtuais. Veja a seguir como a regra funcionará, quem é afetado e o que as casas de apostas terão de fazer para continuar operando.
O que muda com a nova regra do governo
No centro da regulamentação está a criação de um sistema de verificação automática. Toda vez que um usuário tentar se cadastrar em uma plataforma de apostas, a empresa terá de consultar um banco de dados federal para confirmar se a pessoa recebe Bolsa Família ou BPC. O procedimento se repetirá no primeiro login de cada dia, aumentando a chance de flagrar contas já existentes.
Os prazos são curtos. As casas de apostas dispõem de 30 dias para instalar o novo sistema e de 45 dias para checar o CPF de todos os clientes cadastrados. Se o cruzamento de informações identificar um beneficiário, a conta deverá ser encerrada em até três dias úteis, com bloqueio imediato de novos depósitos.
A portaria também obriga as plataformas a manter relatórios mensais sobre as tentativas de depósito negadas. Esses relatórios serão auditados pela Fazenda e poderão gerar multas milionárias caso haja descumprimento da norma. Desse modo, o Executivo pretende garantir que o subsídio pago a famílias em situação de vulnerabilidade não seja desviado para jogos de azar.
Por que o STF determinou a restrição?
A decisão tem origem em uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada por partidos de oposição que questionavam a falta de controle sobre o uso de recursos sociais em sites de apostas. Ao analisar o caso, o STF entendeu que o Estado tem o dever de zelar pelo correto emprego das verbas públicas, sobretudo quando se trata de transferências de renda a grupos vulneráveis.
Em voto que prevaleceu no plenário, o ministro Luís Roberto Barroso destacou que o Bolsa Família “visa assegurar o mínimo existencial” e não pode ser comprometido por comportamentos potencialmente nocivos, como o jogo. O magistrado ressaltou ainda que a limitação não fere o princípio da liberdade econômica, pois não impede apostas com recursos privados e lícitos.
Com a decisão transitada em julgado, coube ao Ministério da Fazenda detalhar a implementação. A portaria recém-publicada, portanto, dá eficácia prática ao entendimento do Supremo e coloca as bets sob supervisão constante.
Impacto direto nos beneficiários do Bolsa Família e do BPC
Hoje, o Bolsa Família atende cerca de 20 milhões de famílias com renda per capita de até R$ 218. O benefício base é de R$ 600, valor que pode subir com adicionais para gestantes, bebês e estudantes. Já o BPC garante um salário mínimo a idosos a partir de 65 anos e a pessoas com deficiência cuja renda familiar seja inferior a um quarto do mínimo.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS), 3,75 milhões de cidadãos receberam o BPC em junho de 2025. Para esses grupos, qualquer redução na renda mensal pode significar falta de comida ou remédios. Por isso, o governo argumenta que restringir depósitos em apostas online é uma forma de proteger o sustento básico.
Na prática, a maioria dos beneficiários não mantinha apostas frequentes, mas estudos da Fazenda mostraram que, entre os apostadores cadastrados em grandes plataformas, cerca de 6% declaravam renda compatível com programas sociais. Ao impedir novos depósitos, o Executivo espera reduzir esse percentual praticamente a zero e, ao mesmo tempo, incentivar a educação financeira.
Obrigações para as casas de apostas online
As empresas que atuam no mercado brasileiro terão de cumprir cinco requisitos centrais:
- Integrar seu sistema ao banco de dados do governo para checagem de CPF.
- Revalidar diariamente os cadastros já existentes.
- Encerrar contas de beneficiários do Bolsa Família ou BPC em até três dias.
- Manter registros detalhados de todas as tentativas de depósito bloqueadas.
- Enviar relatórios mensais à Secretaria de Prêmios e Apostas.
Descumprir qualquer etapa pode gerar sanções que incluem multas, suspensão de licenças e bloqueio de operações financeiras no país. Especialistas em compliance apontam que o custo de adaptação será relativamente baixo para as gigantes do setor, já acostumadas a regulamentações semelhantes na Europa.
A longo prazo, o governo pretende usar o mesmo banco de dados para cruzar informações sobre lavagem de dinheiro, sonegação e financiamento de atividades ilícitas, ampliando o alcance da fiscalização.
Cenário nacional das apostas e desafios futuros
O secretário de Prêmios e Apostas, Regis Dudena, estima que os brasileiros movimentam R$ 2,9 bilhões por mês em apostas, após descontar os prêmios pagos. O retorno médio ao jogador (RTP) gira em torno de 93%, o que faz com que boa parte do dinheiro volte a ser reapostado, criando um ciclo contínuo.
Dados do Ministério da Fazenda revelam que 17,7 milhões de adultos fizeram pelo menos uma aposta no primeiro semestre de 2025, com gasto médio de R$ 164 mensais. O percentual—aproximadamente 12% da população adulta—é similar ao de países onde a atividade já é regulamentada há mais tempo, como Reino Unido e Espanha.
Analistas veem na nova restrição um passo importante rumo à formalização do setor. “A meta é equilibrar liberdade econômica e responsabilidade social”, afirma Dudena. Outras medidas, como campanhas de conscientização sobre jogo responsável e exigência de selos de auditoria independente, devem surgir nos próximos meses, complementando o bloqueio aos beneficiários do Bolsa Família.
O mercado, portanto, continuará crescendo, mas sob vigilância mais rígida. Para os apostadores que não dependem de recursos públicos, nada muda: os depósitos seguem liberados, desde que cumpram as demais regras de prevenção à lavagem de dinheiro.
“Queremos garantir que o dinheiro destinado à alimentação das crianças não termine nas mãos da roleta virtual”, declarou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao comentar a portaria.
Enquanto isso, beneficiários que desejam melhorar a renda podem buscar programas de qualificação profissional oferecidos pelo MDS e por governos estaduais, sem arriscar o orçamento familiar em jogos de azar. A mensagem do governo é clara: apostar é uma escolha pessoal, mas não com recursos que deveriam garantir dignidade a quem mais precisa.